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O Brasil pós COVID-19: lições para a segurança viária

Escrito por Laço Amarelo

07 MAI 2020 - 16H13

José Aurélio

Ramalho

Observatório

Nacional de Segurança Viária

Jorge Tiago Bastos

Universidade

Federal do Paraná

Independentemente

do nível de isolamento social que cada cidadão está adotando nos dias atuais, é

fato que a sociedade como um todo está se deslocando menos. As calçadas e as

faixas de tráfego estão mais vazias, boa parte dos polos geradores de viagens

não geram mais viagens, exceto os supermercados e a indústria básica. Inclusive,

a ideia de básico também é outra. Se antes o básico era ir ao trabalho, se

divertir com a família e amigos e um certo nível de consumo material e de

serviços, hoje o básico é estar saudável, na segurança de um lar e provido de

meios eficientes e remotos de comunicação.

Até

o dia 29 de abril de 2020, segundo o (Ministério

da Saúde, 2020b), foram registradas 5.466 mortes

devido ao COVID-19. Considerando o número de mortes no trânsito proporcionais

para o mesmo período do ano de 2018, ano mais recente com informações

disponíveis, ocorreram 8.678 mortes devido a acidentes de trânsito no mesmo

período de 97 dias desde a primeira morte por COVID-19 (Ministério

da Saúde, 2020a), o equivalente a 89 mortes por

dia. A mortalidade no trânsito no Brasil está associada aos seguintes números:

  • Por ano, cerca de 32.000 pessoas

    morrem em razão de acidentes de trânsito (Ministério

    da Saúde, 2020a);

  • Por ano, cerca de 230 mil pessoal

    resultam com invalidez permanente em razão dos acidentes de trânsito (Líder-DPVAT,

    2020);

  • Um custo social anual de mais de

    50 bilhões de reais (ONSV,

    2018);

  • Cerca de 60% dos leitos de UTI

    ocupados por acidentados no trânsito (Portal

    G1, 2014).

Mas qual a relação do COVID-19 com a segurança viária?

O

impacto mais visível após as primeiras recomendações de isolamento social do

Ministério da Saúde foi visto nas ruas, o movimento de pessoas, a pé ou em seus

veículos diminuiu. Dessa forma, diminuiu também a exposição ao risco de se

envolver em um acidente de trânsito. Ainda que não tenhamos uma medida precisa

disso, houve uma redução dos quilômetros percorridos em veículos, da extensão

percorrida em calçadas e do número de travessias de pedestres. Estimativas

baseadas no Sistema de Monitoramento Inteligente de São Paulo, o Simi-SP, uma

iniciativa do Governo do Estado de São Paulo em parceria com empresas de

telefonia celular para consultar informações georreferenciadas de mobilidade

urbana em tempo real (Governo

do Estado de São Paulo, 2020), indicam que a taxa de

isolamento social no estado de São Paulo

foi de 58% no último domingo, dia 26 de abril (Santiago,

2020). Dados para o Estado do Rio de Janeiro para o dia

24 de abril indicam uma taxa de isolamento social 50% (Ávila

& Palhano, 2020).

A

partir de tamanha redução da circulação, poderia se esperar, portanto, uma

redução nas colisões e nos atropelamentos. Dados do Governo do Estado de São

Paulo, por exemplo, indicam que o número

de mortes em acidentes de trânsito reduziu 31,3% entre 24 e 31 de março na

comparação com o mesmo período do ano passado, e que esta redução concentrou-se

nas rodovias e entre os ocupantes de automóvel (Vieira

& Lobel, 2020).

Contudo,

cabe um alerta, ruas mais vazias trazem a sensação de liberdade e, por

conseguinte, estimulam a falta de atenção e o excesso de velocidade.

Como

diz uma das leis da acidentalidade do consagrado pesquisador norueguês Rune

Elvik, a lei dos eventos raros (Elvik,

2006): “quanto mais raro for um fator

de risco, maior pode ser seu efeito na acidentalidade”. As travessias de

pedestres se tornaram mais raras, o cruzamento entre dois veículos em uma

interseção se tornou mais raro, a saída de veículos dos lotes para ingressar no

fluxo de tráfego ficou mais rara. Portanto, se ambos pedestres e condutores

trafegarem em um estado de maior distração, tem-se o aumento do risco de

acidentes.

Quanto

à velocidade, é preciso distinguir a impressão do espaço público mais vazio

(devido às restrições de mobilidade) do conceito de “terra sem lei”. Os limites

de velocidade continuam vigentes e a velocidade continua sendo um fator de

risco tanto para a ocorrência quanto para a severidade dos acidentes. Este fator de risco em tempos de

isolamento social também é apontado por Keesmaat

& Moore (2020), em sessão de vídeoconferência

promovida pela Global Alliance of NGOs for Road Safety.

Dados

internacionais referentes a países que já tem um histórico maior em relação à

pandemia divulgados pelo European

Transport Safety Council (2020), apontam que os volumes de

tráfego reduzuram entre 70 e 85% nas maiores cidades da Europa, porém os

efeitos na segurança viária não são tão evidentes, conforme:

-

a Holanda relatou uma redução de 50% nas colisões no início do período de

confinamento;

-

a Itália, com medidas mais severas, elatou uma redução do número de mortes no

trânsito da ordem de 70%;

-

a França e a Espanha, porém, reportaram uma queda menor no número de mortes no

trânsito, da ordem de 40 e 47%, respecitivamente.

Por

outro lado, dados do estado australiano de Victoria, indicam que o número de

mortes no trânsito não reduziu após à redução do tráfego (Jacks,

2020), sob a alegação de que os

condutores estão excedendo mais os limites de velocidade. Esse aumento da

incidência de comportamentos de excesso de velocidade foi verificado na Europa,

por meio de relatórios emitidos na Bélgica, Francça, Reino Unido e Dinamarca (European

Transport Safety Council, 2020).

E para o futuro, o

que podemos esperar?

Certamente

algumas mudanças de paradigma. Uma delas seria a mudança na necessidade de se

deslocar. Talvez percebamos que é possível adaptar nossa rotina profissional a

formas mais sustentáveis e seguras de deslocamento. Por que precisamos ir todos

os trabalho todos os dias na mesma hora, usando as mesmas vias e os mesmos

meios? Na verdade, por que precisamos ir ao trabalho

todos dias e nos expor ao risco de sofrer um acidente de trânsito? Não seria um tempo a mais em casa, sozinho ou

junto a família, importante para descomprimirmos um pouco da rotina, muitas

vezes estressante, do local de trabalho? O home-office muito provavelmente terá

uma adesão muito maior quando da retomada da rotina habitual de trabalho.

Outro

paradigma definitivamente colocado em cheque em tempos de COVID-19 é o do valor

que atribuímos à aspectos econômicos em detrimento dos aspectos humanos. Em

outras palavras, o quanto é importante investir naquilo que contribui para a

preservação da vida, o que muitas vezes pode representar um custo econômico

inicial maior, mas se considerarmos os custos sociais e humanos no longo prazo,

certamente as decisões de como e onde investir seriam outras. Os investimentos

em segurança viária são um bom exemplo disso.

Esperamos

que fique mais claro que as atitudes individuais têm sim um impacto no

coletivo. A decisão de sair de casa com sintomas de gripe e correr o risco de

infectar e, no pior dos casos, levar a morte outro ser humano, é, em termos de

risco coletivo, a mesma de se exceder a velocidade, de beber e dirigir, de usar

o telefonfe celular, entre outros comportamentos de risco no trânsito.

Por

isso, perceba o risco, preserve a vida.

Referências

Ávila, E., &

Palhano, G. de. (2020, April 27). Isolamento no RJ cai a 50% em um mês e leitos

públicos de UTI para coronavírus na capital estão cheios. Portal RJ1.

https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/04/27/isolamento-social-no-rj-cai-de-70percent-para-50percent-em-um-mes-e-todos-leitos-de-uti-na-rede-municipal-estao-ocupados.ghtml

Elvik, R. (2006). Laws

of accident causation. Accident Analysis and Prevention, 38(4),

742–747. https://doi.org/10.1016/j.aap.2006.01.005

European Transport

Safety Council. (2020). COVID-19: Huge drop in traffic in Europe, but impact

on road deaths unclear. ETSC News.

https://etsc.eu/covid-19-huge-drop-in-traffic-in-europe-but-impact-on-road-deaths-unclear/

Governo do Estado de

São Paulo. (2020). Governo de SP apresenta Sistema de Monitoramento

Inteligente contra coronavírus. Portal Do Governo.

https://www.saopaulo.sp.gov.br/noticias-coronavirus/governo-de-sp-apresenta-sistema-de-monitoramento-inteligente-contra-coronavirus/

Jacks, T. (2020). Road

toll worse than last year despite COVID-19 traffic slump. The Age.

https://www.theage.com.au/national/victoria/road-toll-on-rise-despite-covid-19-traffic-slump-20200407-p54hv5.html?fbclid=IwAR1RpCZlpBE1hX-j-pwPD65Anfwyn78oUymhwjrlCEMs4nqbQaDwY8seJ0A

Keesmaat, J., &

Moore, O. (2020). Live session 1: COVID-19, safer roads, and urban planning.

Global Alliance of NGOs for Road Safety.

http://www.roadsafetyngos.org/live-session-1-covid-19-safer-roads-urban-planning/

Líder-DPVAT. (2020). Relatório

anual - 2019. https://www.seguradoralider.com.br/Documents/Relatorio-Anual-2019.pdf?zoom=103%25

Ministério da Saúde.

(2020a). Mortes no trânsito - dados definitivos de 2018. MS/SVS/CGIAE -

Sistema de Informações Sobre Mortalidade - SIM.

http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?sim/cnv/ext10uf.def

Ministério da Saúde.

(2020b). Painel Coronavírus. Brasil. https://covid.saude.gov.br/

ONSV. (2018). Observatório

divulga custos per capita dos acidentes de trânsito no país. Observatório

Nacional de Segurança Viária. http://www.onsv.org.br/observatorio-divulga-custos-per-capita-dos-acidentes-de-transito-no-pais/

Portal G1. (2014,

November 12). Vítimas de acidente de trânsito ocupam 60% das UTIs no Brasil. Bom

Dia Brasil.

http://g1.globo.com/bom-dia-brasil/noticia/2014/11/vitimas-de-acidente-de-transito-ocupam-60-das-utis-no-brasil.html

Santiago, T. (2020,

April 27). Taxa de isolamento social em SP foi de 58% no domingo; pior índice

para o dia desde o início da quarentena do coronavírus. Portal G1 SP.

https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/04/27/taxa-de-isolamento-social-em-sp-foi-de-58percent-no-domingo-durante-quarentena-do-coronavirus-indice-ideal-e-de-70percent.ghtml

Vieira, B. M., & Lobel, F. (2020, April 22). Mortes no trânsito caem 31% no estado de SP durante quarentena, diz Infosiga. Portal G1 SP. https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/04/22/mortes-no-transito-caem-31percent-no-estado-de-sp-durante-quarentena-diz-infosiga.ghtml


Fotos: OBSERVATÓRIO Nacional de Segurança Viária
Imagem de capa de Luciano Teixeira por Pixabay

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