O carro é companheiro do paulistano durante 2h58 diárias, em média. Isso significa que o motorista passa até 45 dias por ano no trânsito, segundo pesquisa do Ibope. Sendo assim, o aumento do limite de velocidade nas marginais Tietê e Pinheiros poderia significar um presente para alegrar os mais de 3,5 milhões de condutores que atravessam estas duas vias todos os dias.
Não por acaso, 54% da população brindou a medida que entrou em vigor no último dia 25, aniversário da cidade. Conforme levantamento da ONG Rede Nossa São Paulo e do Ibope, a aprovação sobe para 64% entre os que utilizam o automóvel quase todos os dias para circular pelo município.
Cumprindo com seu papel de ator social no trânsito, o WM1 apurou estudos nacionais e internacionais sobre o tema e repercutiu o assunto com especialistas e entidades que representam organismos importantes do trânsito. Para eles, não há motivos para comemorar. A conclusão é unânime: aumentar a velocidade é ampliar os riscos de acidentes fatais.
“Ou aumenta o número de óbitos ou estarão omitindo os dados”, cravou o diretor-presidente do OSNV (Observatório Nacional de Segurança Viária), José Aurélio Ramalho. “A CET (Companhia de Engenharia de Tráfego) que agora recomenda o aumento de velocidade é a mesma que apresentou os dados de redução de acidentes quando as velocidades foram reduzidas”, lembra.
Ramalho refere-se à diminuição de 52% no número de acidentes fatais nas marginais deflagrada após a gestão paulistana reduzir a velocidade nas vias. A amostra foi baseada no intervalo entre julho de 2015 a julho de 2016, quando houve 31 óbitos, em relação aos 12 meses anteriores, período em que foram computadas 64 ocorrências. (Veja abaixo um estudo publicado pela CET em 2016):
A medida foi seguida pouco depois por outras cidades brasileiras. Curitiba (PR) apresentou redução de 17,5% no número de mortes em 2015 em comparação com o ano anterior. No caso de Fortaleza (CE), a diminuição de velocidade em três importantes avenidas implantada em setembro de 2015 gerou retração no número de acidentes em até 36% cinco meses depois.
Embora acredite que a medida seja relevante para reduzir acidentes, o mestre em Transportes e professor de engenharia de trânsito da FEI (Fundação Educacional Inaciana) Creso Peixoto considera que os períodos avaliados são muito curtos para relacionar a queda de acidentes diretamente à diminuição das velocidades. Além disso, ele afirma que a pesquisa deve levar em consideração o volume do tráfego, em qual período e em quais circunstâncias o acidente ocorreu.
Justificativa
A justificativa da falta de associação crucial entre redução de velocidade e diminuição de acidentes foi a mesma utilizada pelo secretário de Transportes e Mobilidade, Sérvio Avelleda, ao anunciar os novos limites em São Paulo. A pista expressa passou de 70 km/h para 90/h, enquanto a pista central foi de 60 km/h para 70 km/h. Já a pista local teve elevação de 50 km/h para 60 km/h, com exceção da faixa mais à direita, que teve o limite mantido.
O fundamento também foi utilizado pela desembargadora Flora Maria Nesi Tossi Silva, da 13ª Câmara de Direito Público, para autorizar a prefeitura a estabelecer os novos limites – a medida havia sido bloqueada pela Justiça. “Não é possível atribuir a redução de acidentes e mortes nas marginais única e exclusivamente à redução da velocidade nas mencionadas vias públicas, implantada durante a gestão pública municipal anterior”.
O argumento foi semelhante ao utilizado em Santiago, capital do Chile para aumentar o limite de centros urbanos de 50 km/h para 60 km/h, em 2002. A consequência foi o crescimento de 25% nas mortes no trânsito no ano seguinte.
Tendência global
A redução das velocidades começou a virar tendência mundial a partir de 1997, com medidas aplicadas em Estocolmo (Suécia). Atualmente, a capital apresenta relação de 1,1 morte para cada 100 mil habitantes.
Em Tóquio (Japão) e Sydney (Austrália), os limites não passam de 50 km/h. Nova York (Estados Unidos) e Londres (Inglaterra) chegam a adotar velocidades de até 32 km/h em centros urbanos.
Berlim (Alemanha), Buenos Aires (Argentina), Paris (França), Roma (Itália), entre outras capitais também aderiram à recomendação de diminuir os limites de velocidade, que partiu da ONU (Organização das Nações Unidas) por meio de uma campanha lançada em maio de 2011, chamada de Década de Ação pela Segurança no Trânsito.
A proposta coordenada pela OMS (Organização Mundial de Saúde) sugere a governos de todo o mundo que se comprometam a adotar medidas para prevenção de mortes no trânsito até 2020. A orientação é de que seja adotado o limite de 50 km/h em centros urbanos.
A maior parte das avenidas de São Paulo passou a obedecer a sugestão nos últimos anos. De acordo com o prefeito João Doria (PSDB), elas não terão as velocidades revistas.
O que diz o CTB?
Já o CTB (Código Brasileiro de Trânsito) traz recomendações de limites de velocidades diferentes para vias sem esse tipo de sinalização, por meio dos artigos 60 e 61. Ele orienta:
Recomendação do CTB
a) 80km/h
b) 60 km/h
c) 40 km/h
d) 30 km/h
Ou seja, no caso específico da pista expressa, as marginais passaram a utilizar limites acima dos recomendados. Mas o secretário de transportes defende que a geometria da via permite velocidades de até 90 km/h. “Vamos operar na velocidade de projeto da via com todo o nível de segurança com as ações que estamos tomando de fiscalização, orientação e sinalização”, indica Avelleda.
Ele fala de ações referentes ao programa “Marginal Segura” que, além de rever limites de velocidade, prevê implantação de 54 câmeras para monitoramento das marginais, 16 novos radares, disposição de quatro guinchos, quatro ambulâncias e dois helipontos para atender ocorrências nas vias.
Haverá ainda fiscalização de motos por meio de 14 radares-pistola e já foram construídas 19 lombofaixas (travessias elevadas) em ruas de acesso às marginais. Confira a apresentação completa do programa no slide abaixo:
Geometria pobre
O CTB é o principal argumento do mestre em Transportes pela USP (Universidade de São Paulo), Sergio Ejzenberg, para criticar o aumento da velocidade. “No caso específico das marginais, a geometria pobre das pistas, principalmente a de transição, desaconselha ultrapassar esse limite (de 90 km/h) nas pistas expressas”, considerou.
Já Peixoto enfatiza que somente a geometria da pista expressa permitiria tal limite de velocidade. “A geometria seria o único atributo aceito, pois a via é feita de muitos acessos de carros que chegam em velocidades quase 80% inferiores, aumentando risco de colisões”, afirma.
Por outro lado, o especialista afirma que o aumento de velocidade de 70 km/h para 90 km/h não aumenta a letalidade dos passageiros em caso de acidente. “Se um motorista tiver a 90 km/h e prever que um acidente pode acontecer, ele terá cerca de dois segundos de ação para frear e a velocidade na hora do toque no carro à frente não deve ser maior do que 60 km/h”, exemplifica. “Desta forma, a maior parte da energia causada pelo impacto será absorvida pelo veículo da frente. Parte desta energia vai para dentro do carro, mas será assimilada pelo cinto de segurança. Um resíduo de energia vai impactar o cérebro, causando uma concussão cerebral, que pode gerar uma confusão momentânea nos passageiros, mas sem consequências graves” detalha Peixoto.
Isso não quer dizer que ele apoie o aumento de velocidade. Isso porque, apesar de os passageiros poderem ficar ilesos, em colisões a 90 km/h as chances de vida de pedestres, ciclistas e motociclistas são próximas de zero, considera o especialista com base no estudo internacional chamado de Speed Management (gerenciamento de velocidade, em tradução literal). “Há quem diga que não era para essas pessoas estarem lá. Teoricamente está correto. Mas não é por que eles não deveriam estar lá que não devem ser protegidos”.
O prefeito Doria afirma que os ambulantes e moradores de rua serão impedidos de acessar a pista expressa das marginais e confirma que pode rever o aumento de velocidade caso o número de acidentes volte a subir. “Nós não temos compromisso com o erro, mas com o acerto. Mas não acho que isso aconteça”.
Estamos falando de vidas. Não temos que trabalhar em cima de consequências, mas em prevenção. Aumentar velocidades é uma atitude temerária
A declaração é rebatida pelo diretor do OSNV. “Estamos falando de vidas. Não temos que trabalhar em cima de consequências, mas em prevenção. Aumentar velocidades é uma atitude temerária”, constata Ramalho.
Epidemia nacional
Já o diretor responsável pela Associação Brasileira de Tráfego (Abramet), Dirceu Rodrigues Alves Júnior, julga que a redução de velocidade é uma maneira eficaz de combater as mortes no trânsito, problema que considera uma epidemia brasileira. “O Ministério da Saúde está voltado para anomalias como a dengue, doença que vitimou mais de 583 mil pessoas no ano. Isso está certo, mas o trânsito tem que receber a mesma atenção porque ele está associado a 43 mil óbitos e 360 mil ferimentos com sequelas graves”, alerta.
Além de especialistas em segurança e engenharia de tráfego, setores da sociedade civil também criticam os novos limites de velocidades. “Nos pautamos muito pela legislação vigente: a Política Nacional de Mobilidade Urbana e o Plano de Mobilidade de São Paulo. O Plano cita, além da redução de velocidades, o programa Frente Segura, a ampliação de passeios, a revisão e relocação de faixas de travessia, o encurtamento de distâncias de travessia e projetos de geometria para diminuição de velocidade”, destaca o pesquisador em mobilidade do IDEC (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor), Rafael Calabria. “Entendemos, porém, que as medidas são novas e geram impacto. Portanto, necessitam um debate com a sociedade”, conclui.
No entanto, o ponto que é consenso entre todos os atores do trânsito, sejam os que defendem ou que refutam o aumento de velocidade, é que uma melhor capacitação dos condutores é um assunto urgente.“Desde 1997 existem projetos para estabelecer cursos sobre o trânsito nas escolas que não foram colocados em prática e o curso de formação de condutores continua precário. É preciso modificar a base. Mudar a cultura do homem em relação à mobilidade urbana” finaliza o especialista da Abramet.
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