José Aurélio Ramalho
Observatório Nacional de Segurança Viária
Jorge Tiago Bastos
Universidade Federal do Paraná
Independentemente do nível de isolamento social que cada cidadão está adotando nos dias atuais, é fato que a sociedade como um todo está se deslocando menos. As calçadas e as faixas de tráfego estão mais vazias, boa parte dos polos geradores de viagens não geram mais viagens, exceto os supermercados e a indústria básica. Inclusive, a ideia de básico também é outra. Se antes o básico era ir ao trabalho, se divertir com a família e amigos e um certo nível de consumo material e de serviços, hoje o básico é estar saudável, na segurança de um lar e provido de meios eficientes e remotos de comunicação.
Até o dia 29 de abril de 2020, segundo o (Ministério da Saúde, 2020b), foram registradas 5.466 mortes devido ao COVID-19. Considerando o número de mortes no trânsito proporcionais para o mesmo período do ano de 2018, ano mais recente com informações disponíveis, ocorreram 8.678 mortes devido a acidentes de trânsito no mesmo período de 97 dias desde a primeira morte por COVID-19 (Ministério da Saúde, 2020a), o equivalente a 89 mortes por dia. A mortalidade no trânsito no Brasil está associada aos seguintes números:
Mas qual a relação do COVID-10 com a segurança viária?
O impacto mais visível após as primeiras recomendações de isolamento social do Ministério da Saúde foi visto nas ruas, o movimento de pessoas, a pé ou em seus veículos diminuiu. Dessa forma, diminuiu também a exposição ao risco de se envolver em um acidente de trânsito. Ainda que não tenhamos uma medida precisa disso, houve uma redução dos quilômetros percorridos em veículos, da extensão percorrida em calçadas e do número de travessias de pedestres. Estimativas baseadas no Sistema de Monitoramento Inteligente de São Paulo, o Simi-SP, uma iniciativa do Governo do Estado de São Paulo em parceria com empresas de telefonia celular para consultar informações georreferenciadas de mobilidade urbana em tempo real (Governo do Estado de São Paulo, 2020), indicam que a taxa de isolamento social no estado de São Paulo foi de 58% no último domingo, dia 26 de abril (Santiago, 2020). Dados para o Estado do Rio de Janeiro para o dia 24 de abril indicam uma taxa de isolamento social 50% (Ávila & Palhano, 2020).
A partir de tamanha redução da circulação, poderia se esperar, portanto, uma redução nas colisões e nos atropelamentos. Dados do Governo do Estado de São Paulo, por exemplo, indicam que o número de mortes em acidentes de trânsito reduziu 31,3% entre 24 e 31 de março na comparação com o mesmo período do ano passado, e que esta redução concentrou-se nas rodovias e entre os ocupantes de automóvel (Vieira & Lobel, 2020).
Contudo, cabe um alerta, ruas mais vazias trazem a sensação de liberdade e, por conseguinte, estimulam a falta de atenção e o excesso de velocidade.
Como diz uma das leis da acidentalidade do consagrado pesquisador norueguês Rune Elvik, a lei dos eventos raros (Elvik, 2006): “quanto mais raro for um fator de risco, maior pode ser seu efeito na acidentalidade”. As travessias de pedestres se tornaram mais raras, o cruzamento entre dois veículos em uma interseção se tornou mais raro, a saída de veículos dos lotes para ingressar no fluxo de tráfego ficou mais rara. Portanto, se ambos pedestres e condutores trafegarem em um estado de maior distração, tem-se o aumento do risco de acidentes.
Quanto à velocidade, é preciso distinguir a impressão do espaço público mais vazio (devido às restrições de mobilidade) do conceito de “terra sem lei”. Os limites de velocidade continuam vigentes e a velocidade continua sendo um fator de risco tanto para a ocorrência quanto para a severidade dos acidentes. Este fator de risco em tempos de isolamento social também é apontado por Keesmaat & Moore (2020), em sessão de vídeoconferência promovida pela Global Alliance of NGOs for Road Safety.
Dados internacionais referentes a países que já tem um histórico maior em relação à pandemia divulgados pelo European Transport Safety Council (2020), apontam que os volumes de tráfego reduzuram entre 70 e 85% nas maiores cidades da Europa, porém os efeitos na segurança viária não são tão evidentes, conforme:
- a Holanda relatou uma redução de 50% nas colisões no início do período de confinamento;
- a Itália, com medidas mais severas, elatou uma redução do número de mortes no trânsito da ordem de 70%;
- a França e a Espanha, porém, reportaram uma queda menor no número de mortes no trânsito, da ordem de 40 e 47%, respecitivamente.
Por outro lado, dados do estado australiano de Victoria, indicam que o número de mortes no trânsito não reduziu após à redução do tráfego (Jacks, 2020), sob a alegação de que os condutores estão excedendo mais os limites de velocidade. Esse aumento da incidência de comportamentos de excesso de velocidade foi verificado na Europa, por meio de relatórios emitidos na Bélgica, Francça, Reino Unido e Dinamarca (European Transport Safety Council, 2020).
E para o futuro, o que podemos esperar?
Certamente algumas mudanças de paradigma. Uma delas seria a mudança na necessidade de se deslocar. Talvez percebamos que é possível adaptar nossa rotina profissional a formas mais sustentáveis e seguras de deslocamento. Por que precisamos ir todos os trabalho todos os dias na mesma hora, usando as mesmas vias e os mesmos meios? Na verdade, por que precisamos ir ao trabalho todos dias e nos expor ao risco de sofrer um acidente de trânsito? Não seria um tempo a mais em casa, sozinho ou junto a família, importante para descomprimirmos um pouco da rotina, muitas vezes estressante, do local de trabalho? O home-office muito provavelmente terá uma adesão muito maior quando da retomada da rotina habitual de trabalho.
Outro paradigma definitivamente colocado em cheque em tempos de COVID-19 é o do valor que atribuímos à aspectos econômicos em detrimento dos aspectos humanos. Em outras palavras, o quanto é importante investir naquilo que contribui para a preservação da vida, o que muitas vezes pode representar um custo econômico inicial maior, mas se considerarmos os custos sociais e humanos no longo prazo, certamente as decisões de como e onde investir seriam outras. Os investimentos em segurança viária são um bom exemplo disso.
Esperamos que fique mais claro que as atitudes individuais têm sim um impacto no coletivo. A decisão de sair de casa com sintomas de gripe e correr o risco de infectar e, no pior dos casos, levar a morte outro ser humano, é, em termos de risco coletivo, a mesma de se exceder a velocidade, de beber e dirigir, de usar o telefonfe celular, entre outros comportamentos de risco no trânsito.
Por isso, perceba o risco, preserve a vida.
Referências
Ávila, E., & Palhano, G. de. (2020, April 27). Isolamento no RJ cai a 50% em um mês e leitos públicos de UTI para coronavírus na capital estão cheios. Portal RJ1. https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/04/27/isolamento-social-no-rj-cai-de-70percent-para-50percent-em-um-mes-e-todos-leitos-de-uti-na-rede-municipal-estao-ocupados.ghtml
Elvik, R. (2006). Laws of accident causation. Accident Analysis and Prevention, 38(4), 742–747. https://doi.org/10.1016/j.aap.2006.01.005
European Transport Safety Council. (2020). COVID-19: Huge drop in traffic in Europe, but impact on road deaths unclear. ETSC News. https://etsc.eu/covid-19-huge-drop-in-traffic-in-europe-but-impact-on-road-deaths-unclear/
Governo do Estado de São Paulo. (2020). Governo de SP apresenta Sistema de Monitoramento Inteligente contra coronavírus. Portal Do Governo. https://www.saopaulo.sp.gov.br/noticias-coronavirus/governo-de-sp-apresenta-sistema-de-monitoramento-inteligente-contra-coronavirus/
Jacks, T. (2020). Road toll worse than last year despite COVID-19 traffic slump. The Age. https://www.theage.com.au/national/victoria/road-toll-on-rise-despite-covid-19-traffic-slump-20200407-p54hv5.html?fbclid=IwAR1RpCZlpBE1hX-j-pwPD65Anfwyn78oUymhwjrlCEMs4nqbQaDwY8seJ0A
Keesmaat, J., & Moore, O. (2020). Live session 1: COVID-19, safer roads, and urban planning. Global Alliance of NGOs for Road Safety. http://www.roadsafetyngos.org/live-session-1-covid-19-safer-roads-urban-planning/
Líder-DPVAT. (2020). Relatório anual - 2019. https://www.seguradoralider.com.br/Documents/Relatorio-Anual-2019.pdf?zoom=103%25
Ministério da Saúde. (2020a). Mortes no trânsito - dados definitivos de 2018. MS/SVS/CGIAE - Sistema de Informações Sobre Mortalidade - SIM. http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?sim/cnv/ext10uf.def
Ministério da Saúde. (2020b). Painel Coronavírus. Brasil. https://covid.saude.gov.br/
ONSV. (2018). Observatório divulga custos per capita dos acidentes de trânsito no país. Observatório Nacional de Segurança Viária. https://www.onsv.org.br/observatorio-divulga-custos-per-capita-dos-acidentes-de-transito-no-pais/
Portal G1. (2014, November 12). Vítimas de acidente de trânsito ocupam 60% das UTIs no Brasil. Bom Dia Brasil. http://g1.globo.com/bom-dia-brasil/noticia/2014/11/vitimas-de-acidente-de-transito-ocupam-60-das-utis-no-brasil.html
Santiago, T. (2020, April 27). Taxa de isolamento social em SP foi de 58% no domingo; pior índice para o dia desde o início da quarentena do coronavírus. Portal G1 SP. https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/04/27/taxa-de-isolamento-social-em-sp-foi-de-58percent-no-domingo-durante-quarentena-do-coronavirus-indice-ideal-e-de-70percent.ghtml
Vieira, B. M., & Lobel, F. (2020, April 22). Mortes no trânsito caem 31% no estado de SP durante quarentena, diz Infosiga. Portal G1 SP. https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/04/22/mortes-no-transito-caem-31percent-no-estado-de-sp-durante-quarentena-diz-infosiga.ghtml
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Fotos: OBSERVATÓRIO Nacional de Segurança Viária
Imagem de capa de Luciano Teixeira por Pixabay
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