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Crimes de trânsito: um embate político sobre a penalização

Escrito por Portal ONSV

12 ABR 2016 - 15H31

Por Sabrina Vieira Sacco

Mais uma vez, estamos diante de uma discussão sobre morte no trânsito envolvendo o uso de álcool ou outras substâncias psicoativas.

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Mais uma vez, então, uma polêmica e um embate jurídico se levantam única e exclusivamente em torno da penalização daquele que insiste em dirigir sob o efeito de álcool e outras substâncias análogas, sem se preocupar em absoluto com a vida e incolumidade física daqueles que terão a falta de sorte de cruzar o seu caminho.

Parece que o cidadão brasileiro não entende a gravidade de ingerir bebida alcoólica e sair dirigindo um veículo, nem detém grau de consciência coletiva suficiente para mitigar o seu egoísmo individualista precavendo-se ao conceder a direção para outro motorista devidamente habilitado e sóbrio, ou ao utilizar outro meio de locomoção nas ocasiões em que ingeriu bebida alcóolica e outras substâncias psicoativas.

Por tal razão, o Estado tem insistido em intervir, em muitas das vezes, em decorrência da comoção da sociedade em virtude de crimes envolvendo álcool e direção.

Os crimes de trânsito previstos no CTB já sofreram inúmeras alterações, principalmente os que envolvem o uso daquelas substâncias que não possuem outra função senão a de potencializar a imprudência, a ousadia, o sentimento egoísta e individual do motorista.

E novas alterações ainda movimentam os trabalhos do legislativo, em suas duas casas – Senado e Câmara dos Deputados.

Na Câmara, a MP 699/2015 tinha em seu objeto discussão sobre inclusões ao art. 306 que trata como crime de trânsito o simples dirigir sob efeito de álcool e substâncias psicoativas, mas que foi excluída da votação.

No Senado, por sua vez, está a tentativa de qualificação de hediondo o crime de acidentes fatais provocados por motoristas sob influência de bebidas alcóolicas ou substâncias análogas.

A intenção dessa “qualificação” é até louvável: acabar com a impunidade daqueles que matam atrás de um volante, pois tal qualificação traz algumas premissas consideráveis como: a impossibilidade de anistia, graça, indulto e fiança, bem como a obrigatoriedade de cumprimento de pena inicialmente em regime fechado. Mas o embate jurídico, na esfera criminal, promete ser grande em razão das divergências doutrinárias que essa simples alteração legislativa pode alavancar sem a equivalente alteração de outros dispositivos legais, como a própria Lei que trata dos crimes hediondos (Lei 8.072/90).

Sem adentrar no mérito das discussões jurídicas e doutrinárias sobre a validade dessa proposta e sua compatibilidade com o ordenamento jurídico criminal já existente, cabe, todavia, tecer alguns comentários no intuito de investigar a razão pela qual penas mais rigorosas são usualmente perseguidas no Brasil e se essa busca tem alcançado algum sucesso.

Ora, matar na direção de um veículo já é tipificado como crime, inclusive matar sob o efeito de álcool, como está previsto no art. 302, § 2º do CTB[1].

Então, se a questão é qualificar o crime de matar na direção de um veículo sob efeito de álcool na lista dos crimes hediondos, bastaria, simplesmente, o legislador incluir o art. 302, § 2º na Lei 8072/90.

Mas, a questão que gira em torno da pretensão ora analisada para a sociedade brasileira – com exceção dos impactos jurídicos doutrinários que possam vir a ocorrer – está na seguinte pergunta: isso será suficiente para coibir os motoristas afetos a dirigir depois de ingerir bebidas alcóolicas? O que está passando despercebido pelos olhos da sociedade e das autoridades públicas para que essa combinação explosiva deixe de ser uma situação corriqueira e assuma a forma excepcional, já que outras alterações já foram realizadas no CTB com a mesma promessa de reduzir o número de acidentes fatais no trânsito envolvendo álcool e substâncias psicoativas?

De acordo com o CTB, matar alguém dirigindo um veículo deve ser punido com 2 a 4 anos de detenção e, se estiver sob influência de bebida alcóolica, deverá ser punido com a mesmíssima pena, só que na forma de reclusão.

A diferença básica e atual, então, entre matar sob o efeito de álcool ou não, nos termos do CTB, é a possibilidade de cumprir a pena em regime fechado, no caso da pena de reclusão ou de salvar-se por completo do regime fechado, na pena de detenção, já que essa não admite o regime fechado, admitindo apenas o regime semiaberto ou aberto.

Na prática, matar alguém sob o efeito de álcool não tem trazido muita diferenciação, já que o regime fechado não tem sido utilizado pelo Poder Judiciário para punir esse tipo de crime.

Mas, se compararmos o texto do CTB com o próprio Código Penal, veremos que o tipo da pena e os prazos para os casos de matar alguém na direção de um veículo e matar alguém não destoam uns dos outros, especificamente em relação ao homicídio culposo.

Veja comparativo:

HomicídioCrimeRegime no Tipo ComumRegime no Crime de TrânsitoPena no tipo comumno Trânsito
Matar alguém (dolo)Reclusãonão prevê crime dolosoMínimo 6 anos; Máximo 20 anos
Matar alguém com culpa (imprudência, imperícia, negligência)DetençãoDetençãoMínimo 1 ano Máximo 3 anosMínimo 2 anos Máximo 4 anos
Matar alguém sob a influência de álcool ou drogasReclusãoMínimo 2 anos Máximo 4 anos
Matar alguém em decorrência de prática de racha (quando as circunstâncias demonstrarem que o agente não quis o resultado nem assumiu o risco de produzi-lo) ou seja HOMICIDIO CULPOSOReclusãoMínimo 5 anos Máximo 10 anos

Assim, chegamos ao principal empasse jurídico que define a impunidade dos motoristas que MATAM sob a influência de álcool: existe DOLO ou CULPA como no caso de homicídio previsto no Código Penal?

Parece haver um pressuposto básico na nossa legislação de trânsito de que qualquer ato praticado pelo motorista atrás de um volante é mera consequência de um ato culposo, ou seja, de um ato provido de imprudência, ingerência ou imperícia.

Assim, esqueceu a legislação de trânsito de admitir que o motorista pode sim praticar atos que ultrapassam os limites da mera culpa, por absoluto conhecimento dos riscos envolvendo não só a sua pessoa na manipulação de uma “máquina” que, por seu peso, velocidade e sua composição, pode ser letal, bem como a terceiros, já que a “máquina” somente é operada em vias onde outros milhares de pessoas circulam.

Deve ser por isso que o homicídio, aos olhos do CTB, assume apenas a forma culposa, sendo o efeito de álcool uma agravante para mudança do regime da pena - de detenção para reclusão, razão pela qual, não só a doutrina tem criado a figura do DOLO EVENTUAL, para tentar punir com mais rigor esses motoristas inconsequentes, como o Poder Legislativo tem propondo constantes alterações na punição do homicídio na direção.

Essas investidas decorrem necessariamente do fato de que o Poder Judiciário, poder competente para punir os infratores, tem acalentado os criminosos na direção com penas irrisórias e avassaladoras para os familiares das vítimas, como é possível exemplificar a partir do caso em concreto abaixo compilado:

Caso: Sandro Camargo condenado em 1ª instância à detenção de três anos, um mês e 20 dias, em regime SEMIABERTO, e suspensão da habilitação por um ano, por ter provocado a morte de uma criança de 4 anos de idade que ele estava conduzindo em seu veículo.

Versão do Condutor (tese): que conduzia seu auto quando decidiu oferecer carona às vítimas, conhecidas do bairro. Em determinado ponto da rodovia, um veículo Gol, que trafegava em sentido oposto, efetuou ultrapassagem e colidiu contra a lateral de seu auto, provocando o capotamento. Nega ter ingerido bebidas alcóolicas; observava o limite de velocidade para o local.

Versão das Vítimas sobreviventes: as três vítimas (duas mulheres e uma criança) pegaram carona com o condutor. No trajeto, Sandro desviava a atenção para uma das mulheres, que lhe fazia gracejos, e passou a imprimir manobras arriscadas e acelerar em via com declive; chovia na ocasião. A outra mulher (mãe da criança) solicitou-lhe que interrompesse a marcha a fim de descer, mas o réu continuou a conduzir o veículo de forma imprudente, fosse empregando alta velocidade, fosse desviando o olhar para a passageira do lado. Quando então, descia uma rua, ziguezagueou propositalmente, perdeu o controle de direção e capotou. Não viu qualquer outro carro no contra fluxo. O réu havia ingerido etílicos antes de tomar a direção do auto. Os peritos não encontram quaisquer marcas de tinta deixadas por eventual colisão com outro carro, e ainda atestaram que os pneus, a anuviar, quando menos, a versão exculpatória trazida pelo acionado.

Decisão da 2ª instância: Recorreu o autor do crime. E conseguiu a redução da pena de detenção para 02 (dois) anos, 08  (oito) meses e 20 (vinte) dias, em regime semiaberto, e suspensão da habilitação por 02 (dois) meses e 21 (vinte e um) dias. A pena privativa de liberdade foi substituída pela prestação de serviços à comunidade e prestação pecuniária, no importe de 05 (cinco) salários-mínimos, à família da criança.

O que tem trazido, então, esse apaziguamento dos motoristas que dirigem sob a influência de álcool ou substâncias psicoativas ou que dirigem um veículo sem qualquer tipo de responsabilidade, cautela ou prudência, colocando em risco a vida de terceiros?

Será que as sucessivas alterações de leis e penas têm prejudicado as condenações? Será que a falta de clareza no texto legal tem deixando os Tribunais atrelados as mais diversas teorias jurídicas para liberar os motoristas de penas mais rigorosas? Será que a falta de Varas especializadas em crimes de trânsito tem prejudicado os julgamentos e a verdadeira consequência daquele crime para a sociedade? Será que o sistema carcerário está propenso e apto a receber motoristas criminosos e readaptá-los à sociedade?

E mais: será que estamos fazendo o suficiente para que as pessoas se conscientizem de uma vez que vivemos em coletividade e que essa postura individualista de achar que pode beber e dirigir é autodestrutível? Que essa postura autodestrutível aniquila os anseios de uma sociedade mais desenvolvida, mais justa e mais democrática?

Será que estamos apresentando argumentos eficientes para minar qualquer tese jurídica que possam vir alegar sobre o direito individual à liberdade de divertimento?

Portanto, mais do que simplesmente movimentar a máquina legislativa com alterações que, podem ser absolutamente plausíveis e necessárias, sem antes fazer uma reflexão do conjunto dos deveres do Estado na preservação da vida e da incolumidade física de cada cidadão brasileiro, pode tornar essa boa intenção em mais uma medida inócua.

Ater-se, primeiramente, a formação do condutor e a uma fiscalização efetiva, fortalecendo esses dois deveres do Estado, pode evitar não só os crimes fatais, como a punição daquele potencial criminoso.

E, quando o Estado estiver verdadeiramente eficiente na formação do condutor e na fiscalização do cumprimento das leis de trânsito, penas mais severas poderão surtir os efeitos necessários se mantidas as infrações de beber e dirigir por aqueles cidadãos efetivamente educados e devidamente fiscalizados.

Passar por cima da formação do condutor e da fiscalização dando ênfase somente na severidade de uma futura punição é dar mais crédito ao castigo do que ao ensinamento e à remediação do que a prevenção, o que mantém o Brasil na famigerada lista dos países que ainda tropeçam em garantir reais condições de vida e desenvolvimento aos seus cidadãos.

Criar punições mais rigorosas, sem a devida adequação legislativa, quando o básico da educação e da fiscalização ainda sofre deficiências é dar mais munição àqueles que ousam desafiar as leis da física, da vida e do trânsito, zombeteando das consequências teóricas que já existem com a crença inabalável de que qualquer evento envolvendo bebida e direção é uma mera fatalidade, punível com cestas básicas e serviços à comunidade.

Assim, em que pese as tentativas do Poder Legislativo em tornar as penas dos crimes de trânsito mais severos, acredita-se que um projeto do Poder Legislativo de tornar a educação e a fiscalização mais severas, alocando toda a sua força, enquanto poder independente, para que o Estado cumpra a sua função de garantir um trânsito em condições mais seguras, seria a forma mais adequada de recuperar aqueles que dirigem às margens da Lei, sem consciência coletiva e sem respeito à própria vida e de terceiros.

Sabrina Vieira Saco, que atua no Desenvolvimento Institucional do OBSERVATÓRIO,  é formada em Direito pelas Faculdades Metropolitanas Unidas (UNIFMU) e especialista em Direito Empresarial pela Escola Paulista de Direito (EPD). Também é sócia-fundadora do escritório Vieira Sacco Advogados e Associados, em São Paulo.

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